sábado, 23 de novembro de 2013

ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA CRITICA SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA, GESTORES, COMUNICAÇÃO SOCIAL E DJs


 


Por LUÍS ROCHA

Entrevistado pelo ‘Domínio Público’ na sua mais recente passagem pela Madeira, o maestro e compositor critica a gestão cultural do país e não poupa as responsabilidades da comunicação social na mediocridade geral, por vender os DJs como vedetas: “Não reconheço essa profissão”, afirma.

O compositor e maestro António Victorino d’Almeida é taxativo: os gestores são “figuras” que têm sido particularmente “nocivas” ao país – inclusive na área da Cultura, onde têm ajudado, não a conter gastos, mas, pelo contrário, a multiplicá-los. Os políticos e os gestores ao seu serviço têm ajudado a delapidar a nação, inclusive no sector da Cultura, com a conivência de uma comunicação social arredada das questões das artes e das letras e que elevou os ‘disc-jockeys’, vulgo DJs,  a figuras de relevo da cena cultural, baralhando tudo e nivelando pelo mais baixo.

Declarações prestadas ontem ao ‘Domínio Público’, no decorrer da mais recente passagem desta personalidade pela Madeira. Na tarde de sexta-feira, recorde-se, António Victorino d’Almeida esteve no Conservatório/Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM), para responder às questões colocadas pelos estudantes, e à noite protagonizou um concerto a solo no auditório do Centro de Congressos da Madeira (Casino), no qual deu a conhecer obras suas, não se limitando a interpretá-las, mas falando ao público sobre as mesmas.

Como interveniente multifacetado na vida cultural portuguesa – dado que, além de compositor, tem obra literária publicada, filmes realizados, participou como actor em várias produções e é autor de múltiplos programas de divulgação cultural – António Victorino d’Almeida, com o seu estilo irreverente e despretensioso, é personagem privilegiada para comentar o estado do país e o impacto que a actual crise e gestão orçamental do Estado tem tido na vida criativa da nação. Procurámo-lo com esse objectivo, e não ficámos desiludidos: o maestro continua com o sentido crítico de sempre, que já conhecíamos doutras entrevistas. E não poupou nas apreciações que fez.

DESPREZO PELA CULTURA

Hoje em dia, em Portugal, “por um lado, insiste-se no incentivo à poupança, de todas as formas, e apoia-se a toda e qualquer iniciativa. Por outro lado, despreza-se um sector, a Cultura, que poderia não ser uma enorme fonte de rendimento para o país, mas que, certamente, alguma coisa daria. Agora, acabar com ela é considerá-la apenas uma despesa. E é isso que está a acontecer”, afirma.
O facto de o nosso país assistir presentemente a manifestações que pretendem reclamar a atribuição, ao sector cultural, de pelo menos um por cento do Orçamento de Estado mostra bem em que pé é que as coisas se encontram.

“Volto à velha expressão que ouvi muito, muito antes do 25 de Abril, já por volta dos meus 15, 16 anos: ‘A terra a quem a trabalha’. E a música a quem a trabalha, também. Considero que é necessário expurgar totalmente da Cultura pessoas que não lhe pertencem. Na música devem estar músicos, no teatro pessoas do teatro… Os gestores, para a rua! Rua!”, defende.
É claro que admite que são necessários funcionários que se encarreguem da parte administrativa. “Mas essas pessoas não podem estar na direcção. Têm de ser empregadas de uma instituição que, sendo musical, tem de ser dirigida por músicos, sendo teatral, tem de ser dirigida por actores, encenadores e por aí adiante. Ora, nós estamos enxameados de gestores, de pessoas que perguntamos, quem são? A que propósito é que um teatro, um festival, uma orquestra, uma organização qualquer ligada especificamente ao ramo da Cultura tem à sua frente um senhor que a gente não sabe quem é?”, questiona.

Comentários que, curiosamente, se adequam particularmente bem à nossa realidade regional, onde por exemplo o Conservatório/Escola das Artes tem sido sucessivamente gerido por directores estranhos à cena cultural; onde a Orquestra Clássica da Madeira esteve, até recentemente, sob presidência de um advogado e político, e onde ainda hoje o Governo Regional marca uma posição determinante na gestão, mas não com personalidades reconhecidas da área da Cultura (embora a direcção artística tenha sido atribuída ao violinista madeirense Norberto Gomes); onde Pedro Calado deixou triste memória na Câmara Municipal do Funchal, ao ajudar a extinguir, com a (má) desculpa da contenção orçamental, importantes iniciativas culturais, como os colóquios literários que a saudosa Maria Aurora organizava; e onde é a secretária regional Conceição Estudante a responsável pela pasta da Cultura. Victorino d’Almeida escusa-se a aprofundar comentários sobre a realidade particular da ilha, que diz não conhecer em pormenor nem em actualidade; mas as suas apreciações assentam à Madeira como uma luva.

OS GESTORES PARA A RUA

Em meio aos protestos dos polícias que galgaram as escadarias do parlamento nacional e à polémica que envolve as declarações de Mário Soares e as movimentações de Pacheco Pereira, entre outros assuntos, passou despercebida uma notícia importante, diz-nos: “Parece que para o ano será obrigatório divulgar quanto ganham os gestores. E nessa altura, haverá de verificar-se quão nocivas têm sido essas figuras que não têm credibilidade, não têm competência, não têm conhecimentos, não têm sensibilidade, não têm criatividade”, acusa.

O maestro e compositor garante que “com muito pouco dinheiro podem fazer-se muito boas coisas em matéria de Cultura. Não se trata de miserabilismo, nada disso. Mesmo Fellini pôde fazer um filme como ‘E la nave va’, caríssimo, excelente, e pôde fazer um filme como ‘La Strada’, que custou dez reis de mel coado, e foi igualmente excelente”.

Do mesmo modo, é possível fazer-se música com grandes despesas, e com poucas. Almeida enfatiza o facto de termos actualmente em Portugal uma geração de jovens músicos como nunca houve, “os quais garanto-lhe que não são caros”. Só que a criatividade e a sensibilidade não podem ser entregues às mãos de um gestor.

“Nós, por exemplo, não sabermos como é que se chama o director do Teatro Nacional de São Carlos é muito grave. O S. Carlos custa milhões, e as pessoas nem conhecem o director, nem os gestores que andam à volta dele? Quando se pergunta abertamente se alguém sabe quem é, ninguém sabe. E nem sequer sabemos qual é a programação, ninguém liga... E gastam-se milhões com aquilo. Quando grandes actores, grandes músicos, figuras extraordinárias da nossa Cultura que deram provas absolutas vivem de mão estendida a pedir migalhas, enquanto são aqueles senhores quem manda”.

A brincar um pouco, o nosso interlocutor chega mesmo a admitir que um por cento do Orçamento de Estado para a Cultura se calhar chega e basta para se fazerem coisas válidas. “Se calhar até chega. Agora, tem é que se correr com esta gente da Cultura, e pôr lá pessoas válidas”.

SECRETÁRIO DE ESTADO É UM “GROSSEIRÃO E UM COBARDÃO”

A crítica estende-se ao secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que este homem da música classifica como um “medroso”, que inclusive se recusa a responder a perguntas colocadas delicadamente e correctamente: “É um grosseirão e um cobardão”, afirma. “É o mínimo que posso dizer do senhor secretário de Estado”, conclui. E não está só nas suas apreciações à actuação de Xavier: muito do mundo cultural português dá-lhe actualmente nota negativa.

Em tempos, recorde-se, António Victorino d’Almeida defendeu a este jornalista, numa entrevista então publicada no Diário de Notícias da Madeira, que a Orquestra Clássica da Madeira deveria manter-se sob tutela da Associação OCM, uma entidade privada. Na altura, Miguel Rodrigues, então director do Conservatório, pretendia obrigar os músicos da OCM, também professores naquele estabelecimento de ensino, a integrar uma orquestra sob a tutela do mesmo. Na prática, tratava-se de retirar músicos à Associação OCM, que subsistia com apoios governamentais. A iniciativa acabou por não ir para a frente, mas criou-se a Fundação Madeira Classic, presidida por José Alberto Gonçalves, que congregava representantes da Associação OCM, do Conservatório e do Governo Regional. Rui Massena era então administrador da Fundação, director artístico da Orquestra Clássica e director artístico do Conservatório. Foi um ‘reinado’ de um homem só, que tudo dominava na cena musical erudita madeirense, mas que por cá pouco parava, mais ocupado com os seus afazeres fora da ilha. Massena acabou por retirar-se, a Fundação acabou extinta, mas dessa época ficou um pesado legado de dívidas, uma Orquestra abandonada por vários músicos e salva ‘in extremis’ pelo Governo Regional da extinção.
No entanto, o Governo acabou, paradoxalmente, por replicar a mesma fórmula da Fundação, ao criar, sob orientação do secretário regional da Educação, Jaime Freitas, a Associação Notas e Sinfonias do Atlântico, ANSA, que no seu interior, qual ‘matrioska’, contém novamente representantes do Conservatório, do Governo e da Associação OCM. Esta última instituição é que acabou por perder significativo poder e influência sobre a Orquestra, tendo de negociar uma solução alternativa, a contragosto.

MADEIRA PRECISA DE UMA ORQUESTRA SINFÓNICA

Num comentário mais actualizado sobre esta situação, António Victorino d’Almeida congratulou-se ao ‘Domínio Público’ pelo facto de Norberto Gomes ter ficado com as responsabilidades artísticas e de programação da temporada: “Acho muito bem que seja um músico da ilha a ter essas responsabilidades. Agora, se houver alguém acima dele a controlar a sua actividade e as suas escolhas, entidades no Governo que mandam nele, isso não sei, será mau”, declara. “Mas o facto de o terem nomeado para o cargo que ocupa é positivo, porque é um profissional com tarimba, sabe o que é a música, sabe escolher programas”.
De qualquer modo, insiste na importância da Madeira não deixar cair a sua Orquestra Clássica – e continua, mesmo, como no passado o fez, a insistir na necessidade de a aumentar para uma Orquestra Sinfónica.

Sendo a Região uma terra de turismo com uma certa qualidade, se se prescindir também de manter um determinado nível na música erudita, está-se a desperdiçar um potencial. Aliás, em termos de orquestras sinfónicas em Portugal, Victorino d'Ameida chega mesmo ao ponto de afirmar que “estamos a dar uma imagem de trogloditas na Europa”. E exemplifica: em Espanha há 37 orquestras sinfónicas. Na Albânia há cinco. Na Turquia há sete.
“Portugal é o único país que eu conheço nesta situação de carência. É uma vergonha. A Madeira, que é um centro turístico, com um turismo que não é propriamente de ‘pé descalço’, desprezar uma orquestra sinfónica é algo que… sou totalmente contra. Deveria existir uma orquestra sinfónica, que seria uma mais-valia para o turismo. Tenho de defender a minha dama, que é a música. Portugal tem de ter mais e melhores orquestras. Tem de defender os seus valores, e eu sou intransigente defensor desse valor cultural imprescindível em qualquer país civilizado, que é uma orquestra sinfónica”.
O maestro frisa que isso não é uma posição elitista: “As pessoas conhecem o meu modo ser, inclusive de amante do futebol. Não sou elitista”. Mas há coisas que não devem ser encaradas como despesas, mas como mais- valias, insiste.

Questionado sobre o modo como a emigração que actualmente se sente em Portugal tem afectado o mundo da música, Victorino d’Almeida admite que o fenómeno se tem feito sentir, mas deixa transparecer que muitos dos nossos valores têm permanecido cá por uma circunstância “um bocado perversa”: o facto de o mercado para músicos nas orquestras europeias, e não só, ser extremamente difícil e concorrencial.
“Não é fácil um jovem músico português ir para o estrangeiro”, constata. A maioria dos lugares está ocupada.

COMUNICAÇÃO SOCIAL É ‘PAROLA’ EM MATÉRIA DE CULTURA

Porém, precisamente neste enquadramento, o que realmente considera lamentável é que a comunicação social nacional tenha pura e simplesmente ignorado o facto de dois jovens músicos portugueses terem conseguido ser seleccionados para a Orquestra Sinfónica de Berlim, “que é a mais difícil orquestra, para se entrar”.

“É vergonhoso”, sublinha. “Comparando com o futebol, isso é exactamente a mesma coisa que ser contratado para a primeira equipa do Barcelona ou do Real Madrid. Mas nenhum jornal nem televisão disse nada, por parolice, porque são parolos! Porque isto era de pôr na primeira página! Isto é o que mostra o que temos, a comunicação social que, lamento muito dizê-lo, está ao nível do nosso Governo”.
E prossegue, criticando “aquelas bodegas que nos apresentam diariamente, com que martelam as pessoas… Drogam as populações. Tudo serve para fabricar vedetas extraordinárias, até o pior rockeiro… porque os bons, eu conheço-os! E, pior que isso, são os DJs, que é uma profissão que eu não reconheço!  Há duas profissões que eu não reconheço:  a de DJ e a de homem-estátua (risos). Por maior que seja o meu sentido democrático”.
“De repente, eu tenho de ver um músico ao lado de um DJ, como se ambos fossem o mesmo… Lamento muito, mas o meu sentido de democracia não vai tão longe. Não exageremos. Sou a favor do entretenimento, da diversão, das pessoas dançarem, cantarem, irem beber uns copos, se quiserem… Mas isso é entretenimento, não é Cultura”, denuncia. E a comunicação social lusa não devia tratar Cultura e entretenimento por igual.

Finalmente, quanto à atenção dedicada pelo público à sua produção cultural, que é vasta, o nosso entrevistado não tem queixas: tem sido sempre bem acolhido.
“Eu seria de uma injustiça e de uma ingratidão total se dissesse que o público não me apoia. Isso não é verdade. Em 2011 fiz vinte e tal concertos pelo país, que se cifraram em cerca de 14 mil pessoas. É bom”, constata, feliz pelo interesse demonstrado.

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